I
- SEGUNDA-FEIRA
Na escuridão da noite, uma moça de
branco, com longos cabelos claros e pele alva, corria desesperadamente,
chorando, por uma rua deserta. Entrou num beco sem saída; ali, forçou as
maçanetas das portas, sem sucesso. Enquanto experimentava a última, olhava para
a entrada e via, surgindo da penumbra, um homem de preto. Como estava escuro,
só era possível identificar sua silhueta: alto e magro. Ele entrou.
Apavorada, a jovem colou as costas na parede,
ao final do beco. Calmamente, o Homem de Preto caminhou em direção à Moça de
Branco, que estava encurralada. Então, ela implorou:
- Por favor, não me machuque! Não me
machuque!
Lentamente, abaixou-se, chorando. O
perseguidor aproximou-se e, com o punhal na mão, serenamente, disse:
- Não se preocupe, criança. Vamos brincar.
De repente, o silêncio da noite foi
interrompido por um grito de mulher que ecoou, rasgando a escuridão. O grito
foi-se e, com ele, a noite. E, naquele momento, era o som de um pássaro
cantando que regia o alvorecer de um novo dia na Avenida Rio Branco e
adjacências, na cidade do Rio de Janeiro de 1929, então capital da República.
A citada via, inaugurada em 15 de novembro de
1905, inicialmente com o nome de Central, foi a primeira avenida construída no
Rio de Janeiro. Com quase dois quilômetros de extensão, mais de 30 metros de
largura, calçadas de sete metros (confeccionadas em pedra portuguesa), possuía,
entre as duas pistas, um refúgio para pedestres. E fora construída à moda dos boulevards parisienses. Era arborizada,
iluminada, pavimentada, cheia de canteirinhos e candelabros.
As fachadas das suas
edificações apresentam colunas, frisos, figuras alegóricas, guirlandas e outros
detalhes que lhes conferem grande beleza arquitetônica. Começava na Prainha
(atualmente Praça Mauá) e terminava na Praia de Santa Luzia (onde hoje está o
Obelisco). Dividia-se em três partes; a primeira foi ocupada por empresas
ligadas ao comércio de exportação e importação, em virtude da sua proximidade
com a Zona Portuária. A segunda parte encerrava o comércio, como por exemplo:
os bancos, os jornais, os magazines, as confeitarias e as lojas de roupas. A
última, onde se encontra a Praça Floriano (região que ficaria popularmente
conhecida por Cinelândia), é composta por inúmeros edifícios no entorno da
referida praça, tais como: a Escola Nacional de Belas-Artes (atual Museu
Nacional de Belas-Artes), a Biblioteca Nacional, o Palácio Monroe (já
demolido), o edifício Wolfgang Amadeus Mozart (vulgo Amarelinho), a Câmara
Municipal do Rio de Janeiro (Palácio Pedro Ernesto) e o Teatro Municipal. Com a
morte do Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912, passou a chamar-se
Avenida Rio Branco, em sua homenagem. Essa via é o principal palco dos acontecimentos
dos dias seguintes...
Avenida Central década de 10 |
Avenida Rio Branco década de 20 |
II
- TERÇA-FEIRA
Na sala da casa, notava-se que a mobília era
simples. Num canto, havia uma pequena estante repleta de livros. Na cozinha,
existiam louças por lavar.
Lá fora, alguém batia à porta. Carlos de
Assis era um jovem homem branco, de 26 anos de idade, alto e magro, com cabelos
castanho-escuros. Levantou-se da cama preguiçosamente, saiu do quarto e foi
atender à porta da sala, arrastando-se. Abriu-a para o seu amigo Waldir
Medeiros. Este era um jovem homem moreno claro, também de 26 anos de idade e de
mesmo tipo físico que o seu.
- É você, Waldir?! Ainda é cedo.
- Já passou da hora, meu amigo.
Carlos olhou para o relógio de ponteiros na
parede da sala: 07h30min.
- Perdi a hora de novo. – disse Carlos.
Então, deixou o amigo e seguiu para o
banheiro; de lá, ouvia-se o som de água caindo da torneira. A seguir, foi para
o quarto e trocou de roupa. Na sala, Waldir, calmamente, tirou o chapéu,
sentou-se numa cadeira próxima à mesa e perguntou:
- Como anda o livro?
- Está indo. – respondeu ele, do quarto.
Em cima da mesa, o amigo viu uma garrafa de
vinho pela metade, um copo sujo, algumas anotações, folhas em branco, uma
caneta-tinteiro e alguns jornais.
- Afogar-se na bebida não é a solução,
Carlos.
No quarto, ele terminava de abotoar a camisa
e nada respondeu. Da sala, Waldir continuou:
- Esqueça-se dela, meu amigo.
- Que Deus me perdoe, Waldir, mas eu preferia
vê-la morta!
Tinham uma relação de amizade muito forte,
que começara já na infância. Possuíam muitas afinidades. Mas existia uma
diferença marcante entre os dois. Carlos não era um jovem dos mais entusiastas.
Ainda criança, perdera os pais e o irmão mais velho num terrível acidente e,
para completar sua tragédia, foi traído por Antônia, sua ex-noiva. Quanto a Waldir,
este era, psicologicamente, o antônimo do amigo. Dir-se-ia que era o entusiasmo
em pessoa. Sempre alegre e sorridente, encarava a vida com muito bom humor.
Finalmente, Carlos entrou na sala.
- Cuidado com o que deseja, meu amigo, pois pode
conseguir.- advertiu Waldir.
- Não é um pouco cedo pra sermões?!
Waldir sorriu. Carlos retribuiu, colocou o
chapéu e disse:
- Estou pronto!
E o amigo completou animado:
- É assim que se fala! Nada como um dia após
o outro. Vamos curar essa ressaca!
Waldir e Carlos saíram. E este fechou a porta
atrás de si. Eles cumprimentaram Dona Catarina, uma senhora simpática já de
certa idade que varria a calçada do outro lado da rua, cuja principal atividade
era tomar conta da vizinhança e, para tal, adotava a estratégia de ficar horas
e horas varrendo a frente de sua casa. Os amigos caminharam por uma típica rua
do Rio de Janeiro, de onde era possível ver o Aqueduto da Carioca, ou, se
preferir, os Arcos da Lapa, por onde passam os bondes. A seguir, após a
passagem de uma carroça e de um automóvel, atravessaram a rua e compraram um
exemplar do “Jornal do Brasil”.
Os dois prosseguiram a caminhada.
Cumprimentaram duas belas jovens que viram no sentido oposto. Então, seguiram
pela Avenida Rio Branco; o movimento de automóveis e pedestres já era intenso
àquela hora. Lá, entraram na Padaria Aurora e tomaram um cafezinho, enquanto
conversavam. Carlos olhou para o relógio de pulso.
- Estamos atrasados.
Ambos deixaram a padaria e caminharam,
aceleradamente, pela avenida, rumo à Biblioteca Nacional. Lá chegando, Carlos e
Waldir subiram, apressados, a escadaria externa da biblioteca e alcançaram o
saguão de entrada; foram recebidos pelo senhor Gumercindo Rabelo, um alto
funcionário da biblioteca e pai de Maria Clara. Tratava-se de um homem forte,
de cabelos grisalhos, com idade permeando os 50 anos. Ele disse exaltado, com o
dedo em riste:
- Isso são horas, vocês dois?!
- Desculpe, senhor Gumercindo. Não vai
acontecer de novo. – respondeu Carlos.
- Desculpe, chefe. – disse Waldir.
- Chefe?! Por acaso eu tenho cara de índio, ô
Waldir?! – e colocando as mãos na cintura - Já é a segunda vez esta semana;
fiquem sabendo vocês dois! – fez outra observação - E olha que a semana só está
começando! A sorte é que vocês trabalham bem e são bons rapazes – por fim,
ordenou – Agora, vocês dois, mãos à obra!
Antes de partirem, Gumercindo tomou o jornal
das mãos de Waldir, concluindo:
- Agora, podem ir!
Sem guardar uma distância segura, o amigo
sussurrou para Carlos:
- A sorte é que a filha dele gosta de você.
- Eu ouvi isso! – completou Gumercindo.
Então, os amigos seguiram correndo para a
escadaria interna. Subiram o primeiro lance, alcançando o patamar em que estava
o busto em mármore de D. João VI. Depois, pegaram o lance da esquerda e, a
seguir, o último lance, chegando ao terceiro andar.
O escritório era uma típica repartição
pública carioca do final da década de 20. Lá, Carlos e Waldir, cada qual em sua
mesa, em lados opostos da sala, realizavam suas tarefas. Gumercindo, em sua
mesa, ao fundo, de costas para a janela, lia, em voz alta, o exemplar do
“Jornal do Brasil” que tomara de Waldir:
- “Mais uma mulher é morta nas proximidades
da Avenida Rio Branco. Segundo relatos do Delegado Ernesto Paranhos, a jovem de
22 anos, encontrada em um beco sem saída, foi morta com uma estocada no
abdômen. Já é a segunda morte em duas semanas.” – a seguir, comentou - Que
mundo é este?!
- Num beco sem saída?! Mas a que horas foi
isso?! – perguntou Carlos.
O chefe respondeu:
- Diz aqui que, possivelmente, entre 22 e zero
hora de ontem.
- Que importância tem as horas, Carlos? –
indagou Waldir.
- Nada. Só curiosidade.
Como era hora do almoço, os amigos caminhavam
pela Avenida Rio Branco. Viram Antônia Gonzaga; era uma jovem e bela morena, de
estatura mediana, de longos cabelos negros, de 24 anos de idade. Estava
acompanhada de Fernando, um jovem alto e magro, de 28 anos. O casal caminhava
na calçada do lado oposto da avenida. Ela acompanhava-o, segurando-o pelo
braço. Ao ver aquela cena, Carlos estacou. Waldir caminhou mais alguns metros,
até perceber que o amigo ficara para trás. Então, volveu e caminhou na direção
de Carlos.
- Como ela pôde fazer isso comigo?! –
lamentou Carlos.
- Meu amigo, você merece uma mulher melhor
que a Antônia.
- Me trocou por aquele Fernando! E eu nem
desconfiei dela.
- Ela não passa de uma interesseira.
Sim; Antônia era uma interesseira. Traíra
Carlos faltando poucos meses para o casamento. Também pudera, Fernando,
irresistível e cortejador, era o filho mais velho de uma abastada e tradicional
família carioca. Ao contrário de Carlos, um humilde funcionário público, sem
muitas pretensões e aspirante a escritor. E ela não perderia a oportunidade por
nada. Waldir tentou animá-lo:
- Não deixe que isso acabe com o seu dia.
Carlos meneou a cabeça positivamente. Então,
Waldir completou:
- Agora vamos!
Em um modesto estabelecimento de nome Café
Carioca, situado na avenida, no qual garçons iam e vinham, atendendo às mesas,
os amigos conversavam, enquanto terminavam o almoço. Após colocar o último
garfo de comida na boca, Waldir, batendo com ambas as mãos na barriga,
perguntou:
- Sabe qual é a parte chata de terminar o
almoço?
- Qual? – indagou Carlos.
- Perde-se a fome.
Olharam um para o outro e riram. Depois,
cumprimentaram os dois policiais que entraram e sentaram-se a uma mesa próxima.
A seguir, Waldir disse:
- Até que você está bem pra quem bebeu meia
garrafa de vinho.
- Não exagera. Foi só um terço; só um terço.
Antes que pudesse tecer qualquer outro
comentário, Waldir olhou para a entrada do restaurante e anunciou:
- E, agora, a sua felicidade estará completa,
meu amigo.
Carlos volveu o olhar na mesma direção para
ver a jovem Maria Clara Rabelo, filha de Gumercindo, entrando no
estabelecimento e caminhando em direção a eles. Maria era uma moça pequena, de
20 anos, pele alva, com longos cabelos claros e olhos cor de mel. Waldir não se
conteve:
- Com o devido respeito, meu amigo, ela é
simplesmente encantadora!
E Carlos, enfeitiçado, concordou:
- Eu sei.
A moça continuou caminhando naquela direção.
Waldir levantou-se da mesa, deu um tapinha no ombro do amigo e opinou:
- Dê uma chance a ela, dê uma chance a você.
– e completou, lembrando - Ah! Hoje você paga a conta.
Cumprimentou a moça e seguiu rumo à saída.
Ela aproximou-se e disse:
- Olá, Carlos!
Era um tímido na lida com as pessoas,
principalmente com as mulheres. Em especial, com aquela jovem de frágil
aparência, rostinho angelical e uma voz terna, mas de grande força interior,
que representava o objeto de seu desejo, e que atendia pelo nome de Maria
Clara. De certa forma, possuía uma influência sobre ele, algo que o intimidava
e, ao mesmo tempo, atraía-o, fascinava-o. Quando ela estava perto, ele queria-a
distante; e, quando ela distanciava-se, ele desejava-a mais perto. Esse
sentimento dúbio enlouquecia-o. O fato era que o medo de contrair um novo
relacionamento somado ao fato de aquela jovem ser a filha do seu chefe
apavorava-o. Então, desconcertado, ele cumprimentou-a:
- Olá, Maria Clara!
A moça ficou de pé, parada em frente à mesa.
- Onde está o seu cavalheirismo?
Rapidamente, Carlos levantou e puxou uma das
cadeiras para Maria Clara. Ela sentou-se. Ele imitou a ação a seguir e
perguntou:
- Posso lhe oferecer algo?
E a jovem, sem hesitar, respondeu:
- Seu coração.
O rapaz respirou fundo e desviou o olhar de
sua direção.
- Olha pra mim, Carlos.
Prontamente, voltou o olhar para a moça, que
perguntou:
- Por que não foi assistir ao meu ensaio,
ontem à tarde?
- Não estava me sentindo muito bem. Fui
direto pra casa. Desculpe-me.
- Tudo bem. Quando a gente ama, a gente
perdoa tudo. – disse ela, compreensiva.
- Maria Clara, eu...
Ela interrompeu-o:
- Sei que quer me amar também. Só que o seu
coração ainda tem medo.
- Meu coração demora pra se curar.
A jovem, reclinando-se sobre a mesa,
completou:
- Não sou como Antônia. Jamais vou
decepcioná-lo. Sempre o esperei. – e acrescentou - Estou me guardando pra você;
está ouvindo?
O rapaz olhou para mesa; depois, voltou a
olhar para ela.
- Eu ainda não estou pronto. Não quero a
magoar, nem me magoar novamente. – pausou e continuou - Talvez fosse melhor
você me esquecer, Maria.
Acenou ao garçom. A jovem insistiu:
- Acha que é assim? Acha que posso mandar e
desmandar no meu coração, Carlos?
Ansiosa por uma resposta, Maria observava-o;
contudo, ele nada disse. Por fim, o garçom aproximou-se. Pagou a conta e, antes
de partir, falou:
- Só não quero que crie falsas esperanças.
Carlos levantou-se e seguiu rumo à saída,
deixando a bela e doce Maria Clara ali, sozinha, sentada à mesa, com os olhos
marejados.
À medida que anoitecia, na Avenida Rio Branco
e adjacências, todo o som da cidade dava lugar ao solitário som de um cachorro
latindo. Na sala de sua casa, Carlos sentou-se à mesa em que estavam suas
anotações e folhas em branco. Pegou a caneta-tinteiro e começou a escrever ao
mesmo tempo em que narrava:
- “São por volta das 21
horas. No bairro da Lapa, um casal está sentado à mesa de um bar. A mulher, já
balzaquiana, mas de beleza ainda invejável, está trajando um vestido vermelho.
O homem, um pouco mais jovem, está de terno preto. Parecem bastante íntimos.
Então, ele faz o convite. Ela aceita. E, juntos, deixam o estabelecimento. Ela
está bastante entusiasmada. Ele, com maldade nos olhos. Alguns minutos depois,
caminham pelos arredores do Aqueduto da Carioca. Mais adiante, o casal adentra
num modesto hotel. Pega a chave com o recepcionista e sobe as escadas...”
Rua do Resende e Aqueduto da Carioca 1906 |
Rua da Assembleia década de 20 |
III
- QUINTA-FEIRA
Duas noites, mais tarde, algumas pessoas
estavam no estabelecimento de nome Recanto da Lapa; ao fundo, um cavaquinista
tocava um choro. Dentre os clientes, havia uma mulher de vermelho e um homem de
preto que conversavam sentados a uma mesa. Eles riam bastante. Pareciam
íntimos. Instantes depois, levantaram-se e saíram. Seguiram por uma rua de onde
era possível ver os Arcos da Lapa. Após alguns minutos de caminhada, o casal
entrou no Hotel Flor-de-Lis. Aproximou-se do balcão, no qual se encontrava o
recepcionista que entregou a chave ao homem. Então, ele e a mulher subiram as
escadas, eufóricos. Entraram no quarto e começaram a se beijar e a se tocar. A
seguir, o Homem de Preto começou a despir a Mulher de Vermelho, que tentava
despi-lo também, mas era impedida por ele.
- Primeiro as damas. - disse.
Segurou-a pelo pescoço.
- Nunca fui dama. - respondeu.
Ele deu um bofetão em sua face. Ela sorriu.
Depois, jogou-a violentamente na cama. A Mulher de Vermelho demonstrava grande
prazer com a agressividade do Homem de Preto. Naquele momento, ela estava
completamente nua na cama. E o Homem de Preto, de pé, colocara-se em frente a
ela. Sacou o punhal de dentro do paletó. Ela não se intimidou, demonstrava
ainda mais prazer levando uma das mãos à boca. A seguir, ele disse:
- Vamos brincar, criança.
Na recepção do Hotel Flor-de-Lis, o
recepcionista estava sentado, lendo uma revista. Súbito, lá em cima, um grito
de mulher ecoou. Assustou-se. Então, o recepcionista subiu correndo pelas
escadas. Arrombou a porta do quarto e entrou. Viu a mulher nua e morta, deitada
em seu próprio sangue. A cena embrulhou-lhe o estômago. Pôs a mão na boca,
olhou para a janela aberta. Olhou novamente para o corpo na cama. Voltou à
porta. Não se aguentava mais; vomitou.
Sem saber que o assassinato que escrevera
duas noites antes se concretizou horas atrás, Carlos dormia em seu quarto.
Sonhava com a noite e o fogo crepitante consumindo uma casa, de onde um jovem
saía, carregando nos braços um menino. Subitamente, Carlos acordou.
Avenida Beira Mar década de 20 |
Praça Mauá década de 20 |
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Fonte das fotos: The Urban Earth