quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Escritor - Ele tem o destino em suas mãos


I - SEGUNDA-FEIRA

Na escuridão da noite, uma moça de branco, com longos cabelos claros e pele alva, corria desesperadamente, chorando, por uma rua deserta. Entrou num beco sem saída; ali, forçou as maçanetas das portas, sem sucesso. Enquanto experimentava a última, olhava para a entrada e via, surgindo da penumbra, um homem de preto. Como estava escuro, só era possível identificar sua silhueta: alto e magro. Ele entrou.
Apavorada, a jovem colou as costas na parede, ao final do beco. Calmamente, o Homem de Preto caminhou em direção à Moça de Branco, que estava encurralada. Então, ela implorou:
- Por favor, não me machuque! Não me machuque!
Lentamente, abaixou-se, chorando. O perseguidor aproximou-se e, com o punhal na mão, serenamente, disse:
- Não se preocupe, criança. Vamos brincar.
De repente, o silêncio da noite foi interrompido por um grito de mulher que ecoou, rasgando a escuridão. O grito foi-se e, com ele, a noite. E, naquele momento, era o som de um pássaro cantando que regia o alvorecer de um novo dia na Avenida Rio Branco e adjacências, na cidade do Rio de Janeiro de 1929, então capital da República.

A citada via, inaugurada em 15 de novembro de 1905, inicialmente com o nome de Central, foi a primeira avenida construída no Rio de Janeiro. Com quase dois quilômetros de extensão, mais de 30 metros de largura, calçadas de sete metros (confeccionadas em pedra portuguesa), possuía, entre as duas pistas, um refúgio para pedestres. E fora construída à moda dos boulevards parisienses. Era arborizada, iluminada, pavimentada, cheia de canteirinhos e candelabros.
As fachadas das suas edificações apresentam colunas, frisos, figuras alegóricas, guirlandas e outros detalhes que lhes conferem grande beleza arquitetônica. Começava na Prainha (atualmente Praça Mauá) e terminava na Praia de Santa Luzia (onde hoje está o Obelisco). Dividia-se em três partes; a primeira foi ocupada por empresas ligadas ao comércio de exportação e importação, em virtude da sua proximidade com a Zona Portuária. A segunda parte encerrava o comércio, como por exemplo: os bancos, os jornais, os magazines, as confeitarias e as lojas de roupas. A última, onde se encontra a Praça Floriano (região que ficaria popularmente conhecida por Cinelândia), é composta por inúmeros edifícios no entorno da referida praça, tais como: a Escola Nacional de Belas-Artes (atual Museu Nacional de Belas-Artes), a Biblioteca Nacional, o Palácio Monroe (já demolido), o edifício Wolfgang Amadeus Mozart (vulgo Amarelinho), a Câmara Municipal do Rio de Janeiro (Palácio Pedro Ernesto) e o Teatro Municipal. Com a morte do Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912, passou a chamar-se Avenida Rio Branco, em sua homenagem. Essa via é o principal palco dos acontecimentos dos dias seguintes...

Avenida Central década de 10


Avenida Rio Branco década de 20


Praça da República 1911

II - TERÇA-FEIRA

Na sala da casa, notava-se que a mobília era simples. Num canto, havia uma pequena estante repleta de livros. Na cozinha, existiam louças por lavar.
Lá fora, alguém batia à porta. Carlos de Assis era um jovem homem branco, de 26 anos de idade, alto e magro, com cabelos castanho-escuros. Levantou-se da cama preguiçosamente, saiu do quarto e foi atender à porta da sala, arrastando-se. Abriu-a para o seu amigo Waldir Medeiros. Este era um jovem homem moreno claro, também de 26 anos de idade e de mesmo tipo físico que o seu.
- É você, Waldir?! Ainda é cedo.
- Já passou da hora, meu amigo.
Carlos olhou para o relógio de ponteiros na parede da sala: 07h30min. 
- Perdi a hora de novo. – disse Carlos.
Então, deixou o amigo e seguiu para o banheiro; de lá, ouvia-se o som de água caindo da torneira. A seguir, foi para o quarto e trocou de roupa. Na sala, Waldir, calmamente, tirou o chapéu, sentou-se numa cadeira próxima à mesa e perguntou:
- Como anda o livro?
- Está indo. – respondeu ele, do quarto.
Em cima da mesa, o amigo viu uma garrafa de vinho pela metade, um copo sujo, algumas anotações, folhas em branco, uma caneta-tinteiro e alguns jornais.
- Afogar-se na bebida não é a solução, Carlos.
No quarto, ele terminava de abotoar a camisa e nada respondeu. Da sala, Waldir continuou:
- Esqueça-se dela, meu amigo.
- Que Deus me perdoe, Waldir, mas eu preferia vê-la morta!
Tinham uma relação de amizade muito forte, que começara já na infância. Possuíam muitas afinidades. Mas existia uma diferença marcante entre os dois. Carlos não era um jovem dos mais entusiastas. Ainda criança, perdera os pais e o irmão mais velho num terrível acidente e, para completar sua tragédia, foi traído por Antônia, sua ex-noiva. Quanto a Waldir, este era, psicologicamente, o antônimo do amigo. Dir-se-ia que era o entusiasmo em pessoa. Sempre alegre e sorridente, encarava a vida com muito bom humor.
Finalmente, Carlos entrou na sala.
- Cuidado com o que deseja, meu amigo, pois pode conseguir.- advertiu Waldir.
- Não é um pouco cedo pra sermões?!
Waldir sorriu. Carlos retribuiu, colocou o chapéu e disse:
- Estou pronto!
E o amigo completou animado:
- É assim que se fala! Nada como um dia após o outro. Vamos curar essa ressaca!
Waldir e Carlos saíram. E este fechou a porta atrás de si. Eles cumprimentaram Dona Catarina, uma senhora simpática já de certa idade que varria a calçada do outro lado da rua, cuja principal atividade era tomar conta da vizinhança e, para tal, adotava a estratégia de ficar horas e horas varrendo a frente de sua casa. Os amigos caminharam por uma típica rua do Rio de Janeiro, de onde era possível ver o Aqueduto da Carioca, ou, se preferir, os Arcos da Lapa, por onde passam os bondes. A seguir, após a passagem de uma carroça e de um automóvel, atravessaram a rua e compraram um exemplar do “Jornal do Brasil”.
Os dois prosseguiram a caminhada. Cumprimentaram duas belas jovens que viram no sentido oposto. Então, seguiram pela Avenida Rio Branco; o movimento de automóveis e pedestres já era intenso àquela hora. Lá, entraram na Padaria Aurora e tomaram um cafezinho, enquanto conversavam. Carlos olhou para o relógio de pulso.
- Estamos atrasados.
Ambos deixaram a padaria e caminharam, aceleradamente, pela avenida, rumo à Biblioteca Nacional. Lá chegando, Carlos e Waldir subiram, apressados, a escadaria externa da biblioteca e alcançaram o saguão de entrada; foram recebidos pelo senhor Gumercindo Rabelo, um alto funcionário da biblioteca e pai de Maria Clara. Tratava-se de um homem forte, de cabelos grisalhos, com idade permeando os 50 anos. Ele disse exaltado, com o dedo em riste:
- Isso são horas, vocês dois?!
- Desculpe, senhor Gumercindo. Não vai acontecer de novo. – respondeu Carlos.
- Desculpe, chefe. – disse Waldir.
- Chefe?! Por acaso eu tenho cara de índio, ô Waldir?! – e colocando as mãos na cintura - Já é a segunda vez esta semana; fiquem sabendo vocês dois! – fez outra observação - E olha que a semana só está começando! A sorte é que vocês trabalham bem e são bons rapazes – por fim, ordenou – Agora, vocês dois, mãos à obra!
Antes de partirem, Gumercindo tomou o jornal das mãos de Waldir, concluindo:
- Agora, podem ir!
Sem guardar uma distância segura, o amigo sussurrou para Carlos:
- A sorte é que a filha dele gosta de você.
- Eu ouvi isso! – completou Gumercindo.
Então, os amigos seguiram correndo para a escadaria interna. Subiram o primeiro lance, alcançando o patamar em que estava o busto em mármore de D. João VI. Depois, pegaram o lance da esquerda e, a seguir, o último lance, chegando ao terceiro andar.

O escritório era uma típica repartição pública carioca do final da década de 20. Lá, Carlos e Waldir, cada qual em sua mesa, em lados opostos da sala, realizavam suas tarefas. Gumercindo, em sua mesa, ao fundo, de costas para a janela, lia, em voz alta, o exemplar do “Jornal do Brasil” que tomara de Waldir:
- “Mais uma mulher é morta nas proximidades da Avenida Rio Branco. Segundo relatos do Delegado Ernesto Paranhos, a jovem de 22 anos, encontrada em um beco sem saída, foi morta com uma estocada no abdômen. Já é a segunda morte em duas semanas.” – a seguir, comentou - Que mundo é este?!
- Num beco sem saída?! Mas a que horas foi isso?! – perguntou Carlos.
O chefe respondeu:
- Diz aqui que, possivelmente, entre 22 e zero hora de ontem.
- Que importância tem as horas, Carlos? – indagou Waldir.
- Nada. Só curiosidade.

Como era hora do almoço, os amigos caminhavam pela Avenida Rio Branco. Viram Antônia Gonzaga; era uma jovem e bela morena, de estatura mediana, de longos cabelos negros, de 24 anos de idade. Estava acompanhada de Fernando, um jovem alto e magro, de 28 anos. O casal caminhava na calçada do lado oposto da avenida. Ela acompanhava-o, segurando-o pelo braço. Ao ver aquela cena, Carlos estacou. Waldir caminhou mais alguns metros, até perceber que o amigo ficara para trás. Então, volveu e caminhou na direção de Carlos.
- Como ela pôde fazer isso comigo?! – lamentou Carlos.
- Meu amigo, você merece uma mulher melhor que a Antônia.
- Me trocou por aquele Fernando! E eu nem desconfiei dela.
- Ela não passa de uma interesseira.
Sim; Antônia era uma interesseira. Traíra Carlos faltando poucos meses para o casamento. Também pudera, Fernando, irresistível e cortejador, era o filho mais velho de uma abastada e tradicional família carioca. Ao contrário de Carlos, um humilde funcionário público, sem muitas pretensões e aspirante a escritor. E ela não perderia a oportunidade por nada. Waldir tentou animá-lo:
- Não deixe que isso acabe com o seu dia.
Carlos meneou a cabeça positivamente. Então, Waldir completou:
- Agora vamos!

Em um modesto estabelecimento de nome Café Carioca, situado na avenida, no qual garçons iam e vinham, atendendo às mesas, os amigos conversavam, enquanto terminavam o almoço. Após colocar o último garfo de comida na boca, Waldir, batendo com ambas as mãos na barriga, perguntou:
- Sabe qual é a parte chata de terminar o almoço?
- Qual? – indagou Carlos.
- Perde-se a fome.
Olharam um para o outro e riram. Depois, cumprimentaram os dois policiais que entraram e sentaram-se a uma mesa próxima. A seguir, Waldir disse:
- Até que você está bem pra quem bebeu meia garrafa de vinho.
- Não exagera. Foi só um terço; só um terço.
Antes que pudesse tecer qualquer outro comentário, Waldir olhou para a entrada do restaurante e anunciou:
- E, agora, a sua felicidade estará completa, meu amigo.
Carlos volveu o olhar na mesma direção para ver a jovem Maria Clara Rabelo, filha de Gumercindo, entrando no estabelecimento e caminhando em direção a eles. Maria era uma moça pequena, de 20 anos, pele alva, com longos cabelos claros e olhos cor de mel. Waldir não se conteve:
- Com o devido respeito, meu amigo, ela é simplesmente encantadora!
E Carlos, enfeitiçado, concordou:
- Eu sei.
A moça continuou caminhando naquela direção. Waldir levantou-se da mesa, deu um tapinha no ombro do amigo e opinou:
- Dê uma chance a ela, dê uma chance a você. – e completou, lembrando - Ah! Hoje você paga a conta.
Cumprimentou a moça e seguiu rumo à saída. Ela aproximou-se e disse:
- Olá, Carlos!
Era um tímido na lida com as pessoas, principalmente com as mulheres. Em especial, com aquela jovem de frágil aparência, rostinho angelical e uma voz terna, mas de grande força interior, que representava o objeto de seu desejo, e que atendia pelo nome de Maria Clara. De certa forma, possuía uma influência sobre ele, algo que o intimidava e, ao mesmo tempo, atraía-o, fascinava-o. Quando ela estava perto, ele queria-a distante; e, quando ela distanciava-se, ele desejava-a mais perto. Esse sentimento dúbio enlouquecia-o. O fato era que o medo de contrair um novo relacionamento somado ao fato de aquela jovem ser a filha do seu chefe apavorava-o. Então, desconcertado, ele cumprimentou-a:
- Olá, Maria Clara!
A moça ficou de pé, parada em frente à mesa.
- Onde está o seu cavalheirismo?
Rapidamente, Carlos levantou e puxou uma das cadeiras para Maria Clara. Ela sentou-se. Ele imitou a ação a seguir e perguntou:
- Posso lhe oferecer algo?
E a jovem, sem hesitar, respondeu:
- Seu coração.
O rapaz respirou fundo e desviou o olhar de sua direção.
- Olha pra mim, Carlos.
Prontamente, voltou o olhar para a moça, que perguntou:
- Por que não foi assistir ao meu ensaio, ontem à tarde?
- Não estava me sentindo muito bem. Fui direto pra casa. Desculpe-me.
- Tudo bem. Quando a gente ama, a gente perdoa tudo. – disse ela, compreensiva.
- Maria Clara, eu...
Ela interrompeu-o:
- Sei que quer me amar também. Só que o seu coração ainda tem medo.
- Meu coração demora pra se curar.
A jovem, reclinando-se sobre a mesa, completou:
- Não sou como Antônia. Jamais vou decepcioná-lo. Sempre o esperei. – e acrescentou - Estou me guardando pra você; está ouvindo?
O rapaz olhou para mesa; depois, voltou a olhar para ela.
- Eu ainda não estou pronto. Não quero a magoar, nem me magoar novamente. – pausou e continuou - Talvez fosse melhor você me esquecer, Maria.
Acenou ao garçom. A jovem insistiu:
- Acha que é assim? Acha que posso mandar e desmandar no meu coração, Carlos?
Ansiosa por uma resposta, Maria observava-o; contudo, ele nada disse. Por fim, o garçom aproximou-se. Pagou a conta e, antes de partir, falou:
- Só não quero que crie falsas esperanças.
Carlos levantou-se e seguiu rumo à saída, deixando a bela e doce Maria Clara ali, sozinha, sentada à mesa, com os olhos marejados.

À medida que anoitecia, na Avenida Rio Branco e adjacências, todo o som da cidade dava lugar ao solitário som de um cachorro latindo. Na sala de sua casa, Carlos sentou-se à mesa em que estavam suas anotações e folhas em branco. Pegou a caneta-tinteiro e começou a escrever ao mesmo tempo em que narrava:
- “São por volta das 21 horas. No bairro da Lapa, um casal está sentado à mesa de um bar. A mulher, já balzaquiana, mas de beleza ainda invejável, está trajando um vestido vermelho. O homem, um pouco mais jovem, está de terno preto. Parecem bastante íntimos. Então, ele faz o convite. Ela aceita. E, juntos, deixam o estabelecimento. Ela está bastante entusiasmada. Ele, com maldade nos olhos. Alguns minutos depois, caminham pelos arredores do Aqueduto da Carioca. Mais adiante, o casal adentra num modesto hotel. Pega a chave com o recepcionista e sobe as escadas...”


Rua do Resende e Aqueduto da Carioca 1906


Rua da Assembleia década de 20


Outra vista da Avenida Rio Branco

III - QUINTA-FEIRA

Duas noites, mais tarde, algumas pessoas estavam no estabelecimento de nome Recanto da Lapa; ao fundo, um cavaquinista tocava um choro. Dentre os clientes, havia uma mulher de vermelho e um homem de preto que conversavam sentados a uma mesa. Eles riam bastante. Pareciam íntimos. Instantes depois, levantaram-se e saíram. Seguiram por uma rua de onde era possível ver os Arcos da Lapa. Após alguns minutos de caminhada, o casal entrou no Hotel Flor-de-Lis. Aproximou-se do balcão, no qual se encontrava o recepcionista que entregou a chave ao homem. Então, ele e a mulher subiram as escadas, eufóricos. Entraram no quarto e começaram a se beijar e a se tocar. A seguir, o Homem de Preto começou a despir a Mulher de Vermelho, que tentava despi-lo também, mas era impedida por ele.
- Primeiro as damas. - disse.
Segurou-a pelo pescoço.
- Nunca fui dama. - respondeu.
Ele deu um bofetão em sua face. Ela sorriu. Depois, jogou-a violentamente na cama. A Mulher de Vermelho demonstrava grande prazer com a agressividade do Homem de Preto. Naquele momento, ela estava completamente nua na cama. E o Homem de Preto, de pé, colocara-se em frente a ela. Sacou o punhal de dentro do paletó. Ela não se intimidou, demonstrava ainda mais prazer levando uma das mãos à boca. A seguir, ele disse:
- Vamos brincar, criança.
Na recepção do Hotel Flor-de-Lis, o recepcionista estava sentado, lendo uma revista. Súbito, lá em cima, um grito de mulher ecoou. Assustou-se. Então, o recepcionista subiu correndo pelas escadas. Arrombou a porta do quarto e entrou. Viu a mulher nua e morta, deitada em seu próprio sangue. A cena embrulhou-lhe o estômago. Pôs a mão na boca, olhou para a janela aberta. Olhou novamente para o corpo na cama. Voltou à porta. Não se aguentava mais; vomitou.

Sem saber que o assassinato que escrevera duas noites antes se concretizou horas atrás, Carlos dormia em seu quarto. Sonhava com a noite e o fogo crepitante consumindo uma casa, de onde um jovem saía, carregando nos braços um menino. Subitamente, Carlos acordou.

Avenida Beira Mar década de 20


Praça Mauá década de 20


Quiosque na Ladeira Santa Tereza 1911

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Fonte das fotos: The Urban Earth